quinta-feira, 7 de junho de 2007

A revolução que a TV não vê

Acompanhando a cobertura dos telejornais brasileiros e observando as reações exaltadas por aqui, podemos acabar pensando que, desta vez, Hugo Chavez realmente se passou. Não renovar a concessão de uma das mais tradicionais redes de televisão da Venezuela, a RCTV, teria sido ir longe demais. Afinal, apesar de todos lembrarmos (ou não?) que houve naquele país um golpe desavergonhado, alguns dos responsáveis teriam, enfim, sido punidos e o presidente, para o bem ou para o mal, está vivo e de volta com toda a corda.

O fato de alguns veículos de comunicação serem sensacionalistas e mentirosos não justifica que devam ser fechados. Uma democracia deve sobreviver a isso. Caso contrário, imagine o que teria sido de boa parte da imprensa brasileira atual.

Na Venezuela, porém, o buraco era mais embaixo. O documentário A Revolução não Será Televisionada revela aquilo que os meios de comunicação globais esconderam: que a oligarquia venezuelana e a RTCV planejaram o golpe e incitaram a população à violência civil. Essa produção irlandesa de 2003 mostra os eventos de uma maneira que jamais teria sido reportada pela grande imprensa. A equipe chegou ao país poucos dias antes de os protestos contra Chavez começarem e esteve presente nos momentos mais cruciais desse drama. Um deles foi quando os militares chegaram ao palácio Miraflores para prender o presidente, que acaba se entregando para que a sede do governo não seja bombardeada, sem, porém, assinar a renúncia. É realmente impressionante acompanhar estes momentos, como a declaração emocionada da ministra do Meio Ambiente e as manifestações do povo nas ruas depois que os golpistas tomaram o poder.

Também impressionante é assistir aos jornalistas da RCTV vangloriarem-se na frente das câmaras, para todo o país, por terem orquestrado, juntamente com alguns empresários, o primeiro golpe de Estado da América Latina no século XXI. Se o noticiário da CNN foi mais do que suspeito, a vergonhosa aceitação do golpe pelo governo dos EUA somente reforça a má fama e a familiaridade com o crime que tem este governo, confirmada por algumas das pessoas e instituições mais respeitadas.

Depois deste filme bastante premiado, talvez fique mais fácil entender o que significa uma rede de televisão planejar e apoiar um golpe de Estado, mentir e manipular imagens, como é demonstrado, e incitar a população à violência política que, no caso da morte de Chavez, teria provavelmente levado a uma sangrenta guerra civil.

O documentário de Kim Bartley e Donnacha O’Brian, A Revolução não Será Televisionada (The Revolution Will Not Be Televised), pode ser assistido em partes no You Tube. O trecho 4, que está abaixo, mostra as manifestações de rua contrárias a Chavez e a manipulação de imagens feita pela RCTV. O trecho 5 (já na parte inicial) mostra o momento em que os militares chegam ao Palácio.

Mais informações sobre o filme em www.chavezthefilm.com.



Parte 4




Parte 5


quarta-feira, 6 de junho de 2007


Anistia Internacional lança seu Informe Anual

Informe 2007: As políticas do medo criam um mundo perigosamente dividido


(Londres, 23 de maio) Governos poderosos e grupos armados estão deliberadamente instigando o medo para corromper os direitos humanos e criar um mundo cada vez mais polarizado e perigoso, disse hoje a Anistia Internacional no lançamento de seu Informe 2007, a avaliação anual que a organização faz dos direitos humanos em todo o mundo.

“Por meio de políticas míopes, divisivas e que promovem o medo os governos estão enfraquecendo os direitos humanos e o Estado de direito, alimentando o racismo e a xenofobia, dividindo comunidades, intensificando as desigualdades e semeando mais violência e mais conflito”, declarou Irene Khan, secretária-geral da Anistia Internacional.

“As políticas do medo estão gerando um clima perverso de abusos dos direitos humanos em que nenhum direito é inviolável e ninguém está seguro.”

“A ‘guerra ao terror’ e a guerra no Iraque, com seu elenco de abusos dos direitos humanos, criaram divisões profundas e lançaram uma sombra sobre as relações internacionais, dificultando a resolução dos conflitos e a proteção dos civis.”

Marcada por desconfiança e divisões, a comunidade internacional mostrou-se demasiadas vezes impotente ou vacilante diante das maiores crises de direitos humanos de 2006, tanto nos conflitos esquecidos da Chechênia, da Colômbia e do Sri Lanka, quanto nos de maior destaque, que acontecem no Oriente Médio.

As Nações Unidas levaram semanas para reunir a vontade necessária para pedir um cessar-fogo do conflito no Líbano, em que morreram cerca de 1.200 civis. A comunidade internacional não teve a coragem necessária para enfrentar o desastre de direitos humanos que resultou das severas restrições à liberdade de circulação dos palestinos nos Territórios Ocupados, dos incansáveis ataques do Exército israelense e das lutas entre as facções de grupos palestinos.

“Darfur é uma ferida aberta na consciência mundial. O Conselho de Segurança da ONU está sendo atrapalhado pela desconfiança e pelo jogo duplo de seus membros mais poderosos. O governo sudanês está fazendo o quer na organização. Enquanto isso, 200 mil pessoas morreram, um quantidade dez vezes maior foi desalojada e os ataques das milícias estão agora se espalhando pelo Chade e pela República Centro-Africana”, disse Irene Khan.

Emergindo em uma faixa de instabilidade que se estende das fronteiras do Paquistão ao Chifre da África, os grupos armados mostraram sua força e se envolveram em abusos incomensuráveis dos direitos humanos e do direito internacional.

“A menos que os governos enfrentem as injustiças que fomentam esses grupos, a menos que ofereçam uma liderança verdadeira para fazê-los prestar contas dos abusos que cometem e a menos que, também eles, estejam prontos a prestar contas de seus próprios atos, as previsões para os direitos humanos serão sombrias”, afirmou a secretária-geral.

No Afeganistão, a comunidade internacional e o governo afegão desperdiçaram a oportunidade de construir um Estado efetivo baseado nos direitos humanos e no Estado de direito, deixando a população em uma situação de insegurança crônica e corrupção, em meio ao ressurgimento do Talibã. No Iraque, as forças de segurança incitaram a violência sectária ao invés de contê-la, o sistema de justiça mostrou-se lastimavelmente inadequado e as piores práticas do regime de Saddam Hussein – a tortura, os julgamentos injustos, a pena capital e os estupros cometidos impunemente – estão tão vivos quanto antes.

“Em muito países, plataformas políticas ditadas pelo medo estão promovendo a discriminação, ampliando o abismo entre ‘os que possuem’ e ‘os despossuídos’, entre ‘nós’ e ‘os outros’, deixando desprotegidos os que são mais marginalizados”, afirmou Irene Khan.

Somente na África, centenas de milhares de pessoas foram expulsas à força de suas casas, sem que houvesse o devido processo, sem receber compensação e sem ter alternativas de alojamento – geralmente, em nome do progresso e do desenvolvimento econômico.

Os políticos manipularam o medo da imigração descontrolada para justificar medidas mais severas contra requerentes de asilo e refugiados nos países da Europa Ocidental, enquanto os trabalhadores imigrantes eram deixados sem proteção e explorados em todo o mundo, desde a Coréia do Sul até a República Dominicana.

Alimentadas por estratégias discriminatórias de combate ao terrorismo nos países ocidentais, as divisões entre muçulmanos e não-muçulmanos aprofundaram-se ainda mais. Por todo o mundo, aumentaram os incidentes de islamofobia, anti-semitismo, intolerância e ataques a minorias religiosas.

Ao mesmo tempo, os crimes de ódio contra estrangeiros eram disseminados por toda a Rússia; a segregação e a exclusão da comunidade cigana se alastrava de Dublin a Bratislava, numa demonstração flagrante de falta de liderança para combater o racismo e a xenofobia.

“Uma polarização mais intensa e a acentuação dos temores com a segurança nacional reduziram o espaço para a tolerância e para as diferenças de opinião. Por todo o mundo, do Irã ao Zimbábue, diversas vozes independentes que falavam de direitos humanos foram silenciadas em 2006”, disse Irene Khan.

A liberdade de expressão foi suprimida de várias maneiras, como, por exemplo, por meio de processos contra escritores e defensores dos direitos humanos na Turquia; do assassinato de ativistas políticos nas Filipinas; do constante assédio, da vigilância e das freqüentes prisões de defensores dos direitos humanos na China; e do assassinato da jornalista Anna Politkovskaya e das novas leis de regulação das organizações não-governamentais na Rússia. A Internet tornou-se a nova frente de combate pelas diferenças de opinião. Em países como China, Irã, Síria, Vietnã e Belarus ativistas foram presos e algumas empresas compactuaram com os governos para restringir o acesso às informações da rede.

Em países como o Egito, estilos de repressão já ultrapassados ganharam uma nova leitura inspirada na cartilha de combate ao terrorismo. Ao mesmo tempo, no Reino Unido, leis antiterroristas vagamente definidas apresentavam uma potencial ameaça à liberdade de expressão.

Cinco anos após o 11 de setembro, começam a surgir novas evidências de como o governo dos EUA tratou o mundo como se fosse um campo de batalha gigante para sua “guerra ao terror”, seqüestrando, prendendo, detendo arbitrariamente, torturando e transferindo suspeitos de uma prisão secreta a outra, por todo o mundo, com impunidade - no que chamaram de “rendições extraordinárias”.

“Nada representou melhor a globalização das violações de direitos humanos do que a ‘guerra ao terror’ liderada pelos Estados Unidos e seu programa de ‘rendições extraordinárias’, que implicaram governos de países tão distantes quanto a Itália e o Paquistão, a Alemanha e o Quênia”, afirmou Irene Khan. “Estratégias mal concebidas de combate ao terrorismo fizeram pouco para reduzir a ameaça de violência ou para assegurar justiça às vítimas do terrorismo, mas fizeram muito para prejudicar os direitos humanos e o Estado de direito em todo o mundo.

A Anistia Internacional pediu aos governos que rejeitassem as políticas do medo e investissem em instituições de direitos humanos e no Estado de direito, tanto em nível nacional quanto internacional.

“Há sinais de esperança. As instituições européias criaram um momento propício para que haja transparência e para que se preste conta das rendições. Graças à pressão da sociedade civil, a ONU concordou em desenvolver um tratado para controlar as armas convencionais. Em diversos países, novos líderes e novas legislaturas que assumiram o poder têm nas mãos a oportunidade de corrigir as falhas daquelas lideranças que tanto obscureceram o cenário dos direitos humanos nos últimos anos. O novo Congresso dos Estados Unidos poderia tomar a dianteira e dar o exemplo, reconquistando o respeito pelos direitos humanos, tanto em seu território quanto no estrangeiro,” declarou a secretária-geral.
“Do mesmo modo que o aquecimento global exige uma ação mundial baseada na cooperação internacional, a erosão dos direitos humanos somente será enfrentada através da solidariedade global e do respeito pelo direito internacional.”

Brasil - Informe 2007

Brasil

República Federativa do Brasil
Chefe de Estado e de governo: Luiz Inácio Lula da Silva
Pena de morte: abolicionista para crimes comuns
Tribunal Penal Internacional: ratificado


Problemas nos sistemas judicial, prisional e de segurança pública, entre os quais violações sistemáticas dos direitos humanos, contribuíram para os níveis elevados e persistentes de violência criminal. A maioria das dezenas de milhares de mortes causadas por armas de fogo ocorreu nas comunidades mais pobres. Bem mais de mil pessoas foram mortas em confrontos com a polícia, em incidentes classificados como “resistência seguida de morte”, muitas em situações que sugerem o uso excessivo de força ou execuções extrajudiciais. A tortura continuou a ocorrer de forma generalizada e sistemática. O acesso à terra seguiu sendo um foco de violações dos direitos humanos. Houve despejos forçados e ataques violentos contra ativistas rurais, manifestantes contrários à construção de barragens, movimentos de sem-teto e povos indígenas. Muitas pessoas continuaram a trabalhar em condições análogas à escravidão ou sujeitas a servidão por dívida. Os defensores dos direitos humanos continuaram a sofrer ameaças e ataques.

Informações gerais
O presidente Luiz Inácio Lula da Silva foi reeleito para um segundo e último mandato. O primeiro foi marcado por extensas alegações de corrupção por todo o espectro político.

As investigações dessas denúncias relevaram vínculos diretos e indiretos com a erosão da proteção aos direitos humanos. Em todos os níveis do poder Executivo e Legislativo, foram amplamente divulgadas malversações de verbas públicas que, tanto enfraqueceram a capacidade das autoridades de garantir os direitos humanos básicos por meio de serviços sociais, quanto diminuíram a confiança pública nas instituições do Estado. Destacam-se, especialmente, os vários casos notórios da suposta corrupção no Congresso. O envolvimento de autoridades públicas em atividades criminosas resultou em violações dos direitos humanos e num aparente crescimento do crime organizado em todo o país. Vários agentes policiais e prisionais estariam implicados com o narcotráfico, vendendo e contrabandeando armas, telefones celulares e drogas para membros de grupos criminosos nas prisões.

O primeiro mandato do presidente Lula também foi marcado por investimentos sociais voltados a objetivos específicos e por uma política fiscal rigorosa. O eixo principal da política social do governo foi o programa Bolsa-Família, que concedeu créditos a cerca de 11 milhões de famílias pobres, condicionados ao envio de seus filhos à escola de primeiro grau. Esta política foi bem acolhida em alguns setores por trazer estabilidade econômica, ao mesmo tempo em que teria conseguido reduzir um pouco a desigualdade social. Outros setores, entretanto, como os movimentos sociais, expressaram preocupação com as restrições orçamentárias aos investimentos sociais em outras áreas, principalmente segurança pública, reforma agrária e direitos indígenas, a fim de sustentar o pagamento da dívida e o superávit orçamentário.

Apesar de alguns aspectos positivos, como a introdução de uma legislação criminalizando a violência doméstica e o maior desenvolvimento de programas de combate à tortura e proteção aos defensores dos direitos humanos, diversas questões foram claramente evitadas. A área de maior preocupação foi a segurança pública, em que persistiu a ausência de qualquer atenção política efetiva. Nenhum dos candidatos a presidente e poucos candidatos a governador propuseram soluções reais e de longo prazo para enfrentar as dezenas de milhares de homicídios cometidos a cada ano em todo o país. Diante do sempre crescente nível de violência, os líderes estaduais e federais continuaram a buscar vantagens políticas propondo soluções reativas e de curto prazo.

A ratificação do Protocolo Facultativo à Convenção das Nações Unidas contra a Tortura foi aprovada pelo Congresso, mas as reformas para que a legislação brasileira se adequasse ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional foram persistentemente obstruídas.

Sistema de justiça criminal
O sistema de justiça criminal continuou a se deteriorar devido ao descaso de longa data dos governos estaduais e federal. As reformas prometidas não foram implementadas, de modo que os sistemas prisional, judiciário e policial, carentes de preparo e de recursos, foram forçados a enfrentar de maneira inapropriada níveis extremos de violência criminal. Isso contribuiu para as violações sistemáticas dos direitos humanos por parte destes agentes responsáveis pelo cumprimento da lei, as quais incluíam o uso excessivo da força, execuções extrajudiciais, tortura e maus-tratos, bem como corrupção generalizada.

A tentativa de determinadas autoridades de definir os problemas de segurança pública como uma guerra resultou na adoção cada vez maior de táticas militares pelas forças policiais estaduais. As comunidades mais pobres, que recebem menos proteção do Estado, foram duplamente vitimadas, pois são afetadas por uma maior concentração de criminalidade violenta, ao mesmo tempo em que sofrem com os métodos repressivos e injustos usados pela polícia para combatê-la.

Violações dos direitos humanos por parte da polícia e do Exército
Muito mais de mil pessoas foram mortas por policiais. Estas mortes raramente são investigadas de modo adequado, pois são registradas como “resistência seguida de morte”, o que, em geral, faz com que se descarte previamente qualquer investigação aprofundada. De acordo com as estatísticas oficiais, nos primeiros nove meses de 2006 a polícia do Rio de Janeiro matou 807 pessoas, um pequeno aumento com relação ao ano anterior; em São Paulo, foram 528, mais que o total registrado em todo o ano de 2005. A própria polícia e os agentes prisionais se tornaram alvo de ataques, sendo que muitos foram mortos.

Em maio, o Estado de São Paulo foi abalado pela violência de criminosos e policiais. Entre os dias 12 e 20, integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC), uma organização criminosa que surgiu no sistema carcerário do estado, saíram às ruas numa impressionante demonstração de violência organizada. Alegando protestar contra as condições nas prisões e a transferência de seus chefes para um presídio de segurança máxima, mataram mais de 40 policiais, incendiaram mais de 80 ônibus, atacaram delegacias de polícia, bancos e uma estação de metrô, coordenando ainda motins e tomadas de reféns em cerca de metade das prisões do estado. Em retaliação, a polícia noticiou que havia matado mais de 100 “suspeitos”.

Em diversos incidentes em bairros pobres de todo o Estado de São Paulo, pessoas foram assassinadas por homens mascarados em situações que sugeriam execuções extrajudiciais ou vinganças do tipo cometido por grupos de extermínio. As autoridades estaduais apenas forneceram informações detalhadas sobre os mortos pela polícia depois que o Ministério Público ameaçou abrir um processo judicial. No auge da violência, 117 pessoas morreram em incidentes com armas de fogo num só dia. Em julho, o PCC lançou mais ataques, matando vários agentes prisionais. A reação do governo federal e estadual à violência foi amplamente criticada pelos meios de comunicação, por especialistas em segurança pública, policiais e militantes dos direitos humanos, por tentarem tirar vantagem política da situação antes das eleições, em vez de buscar uma solução para a violência.

As autoridades estaduais do Rio de Janeiro adotaram táticas cada vez mais militarizadas nas suas tentativas de combater os grupos de traficantes que controlam a maioria das favelas da capital. Um veículo blindado de transporte de tropas, conhecido popularmente como “caveirão”, foi usado para policiar os bairros mais pobres da cidade. Noticiou-se que alguns transeuntes foram mortos por policiais militares que atiravam indiscriminadamente de dentro dos “caveirões”. Em março, o Exército posicionou soldados e tanques nas ruas das favelas do Rio, na tentativa de encontrar armas que haviam sido roubadas. Embora os promotores públicos federais tenham contestado a legalidade da operação, nenhum dos governos, federal ou estadual, questionou a decisão do Exército de ir às ruas. Os moradores das favelas, porém, reclamaram do tratamento arbitrário, violento e discriminatório dos soldados, que não haviam sido treinados nem tinham mandado para realizar tais operações.

Em dezembro, as autoridades estaduais e municipais do Rio de Janeiro anunciaram que estavam investigando informações de que até 92 favelas estariam sob o controle de milícias parapoliciais. Segundo relatos, elas eram formadas por ex-policiais e policiais ainda na ativa que atuavam com o respaldo de políticos e lideranças comunitárias locais. As milícias estariam garantindo a “segurança” dessas comunidades. Os residentes, porém, denunciaram o uso extensivo de violência e a extorsão de pagamentos em troca de proteção. Algumas comunidades relataram ter sofrido retaliações violentas das facções do tráfico depois que as milícias se retiraram dos seus bairros.

Há informações de assassinatos característicos de grupos de extermínio nos estados nordestinos da Bahia, Pernambuco e Sergipe. Dois homens previamente acusados de envolvimento com um destes grupos, que nos anos 90 era conhecido como “a Missão”, foram nomeados secretário de Segurança Pública e comandante da Polícia Militar do Estado de Sergipe. Membros da Comissão Estadual de Direitos Humanos expressaram sua preocupação com o retorno dos grupos de extermínio, após receberem notícias de vários assassinatos e desaparecimentos forçados. Em um incidente ocorrido em abril e testemunhado por mais de 50 pessoas, três rapazes adolescentes foram presos por integrantes da unidade de elite da Polícia Militar na comunidade de Mosqueiro. Um dos rapazes teria sido torturado até desmaiar, voltando a si após ser abandonado num matagal. Os outros dois teriam desaparecido e, até o final do ano, não havia sido encontrado qualquer sinal deles.

*Em abril, segundo informações, integrantes da Polícia Militar de Recife, no Estado de Pernambuco, teriam detido um grupo de 14 adolescentes que estavam participando do Carnaval. Depois de tê-los torturado, a polícia os teria levado até uma ponte do Rio Capibaribe e os obrigado a pularem no rio. Os corpos de dois dos rapazes, de 15 e 17 anos, foram encontrados dois dias mais tarde. Um inquérito foi aberto e cinco policiais foram acusados de homicídio e tortura, porém, em junho, um dos rapazes que testemunhou contra a polícia foi morto a tiros.

Sistema carcerário
O sistema penitenciário esteve sob enorme pressão devido ao crescente aumento da população carcerária e à insuficiência de investimentos, tanto financeiros quanto políticos. Noticiou-se com regularidade casos de tortura e maus-tratos cometidos por policiais, carcereiros e por outros detentos com o objetivo de controlar, punir e corromper. Os centros de detenção apresentavam superlotação extrema e condições sanitárias precárias, ao mesmo tempo em que seus funcionários continuavam mal treinados e sem apoio. Houve vários motins e inúmeros casos de violência entre os presos, pois muitas penitenciárias passaram a ser controladas por grupos criminosos. Tentativas tardias de desmembrar as quadrilhas fizeram com que se recorresse às penitenciárias de segurança máxima, com a aplicação de um Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), que havia sido anteriormente criticado, tanto pelo Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça quanto pela Ordem dos Advogados do Brasil, por infringir os dispositivos de proteção dos direitos humanos contidos na Constituição e no direito internacional.

O colapso do sistema prisional foi evidenciado no Estado de São Paulo pelas condições observadas na penitenciária de Araraquara depois dos motins ocorridos em maio. Durante vários meses, 1.600 presos, inclusive doentes e feridos, foram mantidos num pátio com espaço para 160 pessoas enquanto a prisão era reformada.
Houve relatos persistentes de violações contra prisioneiras. Na Colônia Penal Feminina, um presídio de mulheres no Recife, a AI testemunhou condições extremamente precárias. As internas dormiam no chão e nos chuveiros, os serviços de saúde eram limitados e elas relataram o tratamento violento recebido dos carcereiros. As crianças recém-nascidas ficavam nas celas com as mães, algumas das quais estariam doentes, sem atendimento médico e condições de segurança suficientes.

Impunidade
A extrema lentidão e a ineficácia do sistema judicial reforçaram a impunidade para violações dos direitos humanos. Em fevereiro, o Tribunal de Justiça de São Paulo absolveu o coronel Ubiratan Guimarães de sua participação no massacre da penitenciária do Carandiru, em 1992, no qual foram mortos 111 prisioneiros. Até o final de 2006, nenhum outro policial havia sido julgado por sua participação no massacre.

Uma vitória importante em meio ao clima de impunidade geral foi a condenação, em março, de um dos cinco policiais militares acusados de matar 29 moradores na Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, em 2005.

Terra e moradia
O acesso à terra e à moradia foi um foco de violações generalizadas dos direitos humanos. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra, 25 ativistas rurais foram mortos entre janeiro e outubro, 16 deles no Estado do Pará. Milhões de pessoas sofreram privações sociais e econômicas extremas por não terem acesso à terra e à moradia, tanto nas áreas urbanas quanto rurais.

Aqueles que lutam pelo direito à terra, incluindo os povos indígenas, ativistas rurais e grupos de sem-teto urbanos, sofreram despejos forçados, ameaças e ataques violentos. Alguns foram assassinados. Pessoas que buscavam acesso à terra geralmente não tiveram acesso à Justiça. Há informações de que as decisões judiciais teriam sido discriminatórias em alguns casos; em outros, as pessoas enfrentaram acusações criminais que teriam razões políticas.

*Em agosto, o Tribunal de Justiça do Pará emitiu ordens de despejo para um total de 4 mil famílias, sem lhes oferecer qualquer alternativa de acomodação. Vários dos assentamentos que sofreriam despejo estavam em terras que poderiam ser desapropriadas segundo as leis de reforma agrária, uma vez que as fazendas em que se situavam ou eram consideradas "improdutivas" ou tinham localização ilegal ou, ainda, se valiam de trabalho escravo ou servidão por dívida. Em setembro, os advogados da Comissão Pastoral da Terra conseguiram a suspensão de alguns despejos, mas muitas famílias continuaram sob ameaça.

Houve relatos de tentativas contínuas de prejudicar o trabalho de ativistas sociais no Estado de Pernambuco e de criminalizar seus líderes. Em maio, uma associação que representava policiais militares promoveu uma campanha publicitária com anúncios espalhados pelas ruas do Recife acusando os integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de agirem sem lei e sem limites. Dez membros do MST foram presos devido a acusações que, segundo informações, tiveram motivos políticos.

*Dois mandados de prisão distintos foram expedidos contra Jaime Amorim, um dirigente do MST. O primeiro por que ele teria liderado uma ocupação de terras que um órgão do governo federal havia considerado passível de desapropriação. O segundo foi emitido após um incidente de perturbação da ordem pública diante do consulado dos Estados Unidos, por ocasião da visita do presidente Bush ao Brasil, em novembro de 2005. Vários dias após o acontecimento, Jaime Amorim foi acusado de desobediência, incitamento ao crime e desrespeito à autoridade. Ele foi detido quando acompanhava os funerais de dois ativistas sem-terra assassinados em agosto. Ambos os mandados de prisão foram anulados e Amorim ficou em liberdade provisória.

No Estado do Espírito Santo, os povos indígenas tupiniquim e guarani sofreram ameaças e ataques por causa da campanha que desenvolvem há muito tempo pela posse de suas terras ancestrais. As áreas em litígio foram disputadas pela Aracruz Celulose S/A, uma grande produtora de celulose de eucalipto. Embora a Fundação Nacional do Índio (FUNAI), subordinada ao governo federal, tivesse reconhecido que as terras eram próprias para demarcação, a decisão de ir adiante com o processo foi bloqueada.

*Em janeiro, integrantes da Polícia Federal expulsaram violentamente os índios tupiniquim e guarani de povoados construídos em terras sob litígio. Treze índios foram feridos e dois povoados incendiados, após serem atacados com helicópteros, cães, balas de borracha e gás lacrimogêneo. Segundo informações, a Aracruz Celulose S/A deu apoio logístico à Polícia Federal durante a expulsão.

*Em setembro, promotores públicos federais iniciaram um processo civil bem-sucedido contra a Aracruz Celulose S/A, por esta haver promovido uma campanha discriminatória contra os índios tupiniquim e guarani.

Trabalho escravo
Houve progresso no combate ao trabalho escravo. De acordo com a Organização Internacional do Trabalho, 18 mil pessoas foram libertadas da servidão por dívida desde 1995 por membros da unidade móvel do governo federal. Porém, o problema estava longe de ser erradicado. Segundo a Comissão Pastoral da Terra, todos os anos cerca de 8 mil pessoas são forçadas a submeter-se a condições de trabalho análogas à escravidão ou a servidão por dívida. As prometidas reformas na Constituição para permitir o confisco de terras onde se verifica trabalho escravo continuaram pendentes no Congresso.

Defensores dos direitos humanos
Os defensores dos direitos humanos continuaram a sofrer discriminação, ameaças e ataques. Muitos grupos de direitos humanos enfrentaram uma reação negativa após os violentos ataques do PCC em São Paulo.

O governo federal empreendeu alguns esforços para tentar estabelecer seu programa nacional para os defensores dos direitos humanos. Eles resultaram em sessões de treinamento inicial para policiais estaduais no Estado do Pará e preparações para treinamento semelhante nos estados de Pernambuco e Espírito Santo. Contudo, houve relatos de que o plano tinha graves deficiências. Integrantes da sociedade civil que participaram do projeto expressaram diversas preocupações, sobretudo com a ausência de um órgão nacional dotado de recursos suficientes para supervisionar o programa e com a persistente relutância da Polícia Federal em oferecer proteção.

O fato de as autoridades não processarem os responsáveis por assassinar defensores dos direitos humanos continuou a colocar suas vidas em perigo.

*Vicente Cañas Costa, um jesuíta espanhol que trabalhava na defesa dos povos indígenas, foi assassinado em 1987 no Estado do Mato Grosso. Dezenove anos depois, dois dos homens suspeitos do crime foram levados a julgamento. Embora os grupos de direitos humanos tenham ficado satisfeitos pelo fato de o tribunal reconhecer que Vicente Cañas Costa havia realmente sido assassinado, as falhas na investigação inicial teriam contribuído para que ambos os suspeitos fossem absolvidos.

Relatórios e visitas da AI

Relatório
Brasil: “Chegamos para buscar suas almas”: o caveirão e o policiamento no Rio de Janeiro (Índice AI: AMR 19/007/2006)

Visita
Representantes da AI visitaram o Brasil em maio e junho.